Às vésperas de dar um importante passo, você percebe o caos ao seu redor. Várias armadilhas para te fazer retroceder, como num jogo de computador. Parabéns, essa é a vida. Ou: se fudeu, você nasceu!
Esse é o lugar onde o telefone não toca e quando toca nunca é quem você gostaria que estivesse chamando. Esse é o lugar onde o relógio corre muito depressa quando você precisa de tempo e muito devagar quando a espera é a única solução.
Aqui jaz um problema.
Não tá fácil para ninguém, mas se é com você é óbvio que é pior. Há uns seis anos, eu vejo pessoas que eu gosto morrer. Em um amontoado, que até parece de guerra. Mal dá tempo de viver um luto porque o trabalho chama. Muitas vezes se acaba por pular etapas.
Contemplar é proibido. Mas, como boa rebelde, eu contemplo. Quase sempre me assombro, principalmente com o que deixei passar.
Não sou vítima nem algoz, só quero viver da melhor maneira possível e - juro que aprendi isso com a minha própria experiência, não veio do berço - muitas vezes, para ser feli, é preciso passar por cima dos outros. Não me interpretem mal, não é preciso roubar, nem ferir, nem matar mas dois corpos simplesmente não ocupam o mesmo lugar ao sol no mesmo espaço de tempo. Sempre vai haver um perdedor e um vencedor. Tenho vivido há mais de três décadas com o primeiro título em muitas categorias e não estou muito confortável nessa roupa.
É bom lembrar que, pra todo mundo, há uma sombrinha virada pelo vento, uma descarga que não faz a merda descer, um ônibus que não espera, uma chaleira que ferve antes da hora, uma sinaleira que não abre.
Mas também há champagne, Häagen-Dazs, dias azuis, abraços bem-vindos, borboletas na barriga, amores de verão, cheiro de grama molhada, mar lambendo a areia.
Eu tenho um pouco de tudo isso e quero menos da parte das sombrinhas viradas, sem ter que me sentir culpada. Por que eu me sentiria? Segundo Nelson Rodrigues, é o complexo de culpa que nos salva de andarmos de quatro e ficarmos amarrados ao pé da mesa, alimentados em uma lata de Queijo Palmira.
Ao contrário da constataçãode que, às vezes, é preciso passar por cima dos outros para ganhar um lugar ao sol, o complexo de culpa em mim é inato. É ele que azeda o champagne, derrete o Häagen-Dazs, nubla os dias azuis, entre outras coisas.
Há uma relação conflituosa: deve-se esconder a culpa dentro do armário, cagar para os outros, rasgar os vestidos de luto e correr para a praia, ou deve-se sofrer mais que a Maria do Bairro e ganhar uma medalha e uma bonita coroa de orquídeas no final?
Meu amigo, essa angústia não é só minha. E eu não me culpo de dividí-la com você. Em algum lugar, há alguém, um fato, uma partícula que faz, fez ou fará tudo para que você se sinta muito, mas muito culpado e sozinho e reles e pústula e escória.
Talvez, você saiba lidar com isso de maneira mais prática do que eu. Ou talvez, você seja apenas egoísta - segundo as minhas últimas auto-estatísticas, não há ninguém no mundo mais egoísta do que eu, então, esse não deve ser o seu caso.